A expressão “Estado de Coisas Inconstitucionais” surgiu em 1997 pela Corte Constitucional Colombiana com o intuito de remediar problemas relacionados ao descumprimento, em massa, de diversos direitos constitucionais, através da Sentencia de Unificación nº 559 1 e oportunamente em outros casos relacionados à violência urbana e ao sistema prisional.
O modelo do Estado de Coisas Inconstitucionais é assim entendido quando se observa um maciço desrespeito aos direitos fundamentais, não é uma ofensa pontual a um único direito fundamental, mas sim um conjunto de direitos humanos constitucionalmente garantidos, sendo desrespeitados simultaneamente. O Estado de Coisas Inconstitucionais está vinculado à:
[…] constatação e declaração de um quadro de violações generalizadas, contínuas e sistemáticas de direitos humanos fundamentais que, para ser superado, requer a ocorrência de transformações na estrutura e na atuação dos poderes constituídos (Legislativo, Executivo e Judiciário), que importe na construção de soluções estruturais aptas a extirpar a situação de inconstitucionalidades declaradas (2) […].
A principal percepção prática que o Estado de Coisas Inconstitucionais reivindica é a diretriz pragmática, isso porque ela impulsiona o Estado à implementar ações e políticas públicas que coloquem um fim na situação que gerou o descumprimento dos direitos constitucionalmente tutelados.
Em vista dos atos comissivos e omissivos praticados pelas autoridades públicas que deram vazão à instalação de um estado de coisas inconstitucionais, ou seja, a numerosa desconsideração de um conjunto de preceitos fundamentais nasce, portanto, um múnus de agir por parte do Estado, com a finalidade de reverter esse quadro de inércia através de uma mudança estrutural. Coloquialmente, seria um mutirão de benfeitorias. Não obstante, pode-se dizer que:
[…] apenas transformações estruturais da atuação do Poder Público podem modificar a situação inconstitucional. Ante a gravidade excepcional do quadro, a corte (3) se afirma legitimada a interferir na formulação e implementação de políticas públicas e em alocações de recursos orçamentários e a coordenar as medidas concretas necessárias para superação do estado de inconstitucionalidades (4).
Conforme indica o professor Carlos Campos (5), para a caracterização de um Estado de Coisas Inconstitucionais é necessário que existam alguns pressupostos básicos, quais sejam: a) uma instabilidade excessiva e difundida dos direitos fundamentais de um indeterminado número de pessoas, e aqui não se trata de uma proteção deficiente (6) do Estado, mas sim um generalizado desatendimento de tais direitos; b) somada a uma duradoura inércia do poder público no cumprimento de suas obrigações para assegurar e viabilizar as garantias constitucionais; c) solucionar a questão da violação maciça dos direitos fundamentais demanda, impreterivelmente, uma soma de esforços dos órgãos públicos abrangendo alterações estruturais e dispêndio de recursos públicos, bem como uma análise das políticas públicas no sentido de adaptá-las para a real situação que o ente público enfrenta; d) exige-se, de igual modo, que esteja presente uma latente capacidade de congestionar e superlotar (mais do que já é) o Poder Judiciário, com as possíveis demandas de indenização pleiteadas por aqueles que tiverem seus direitos ultrajados.
A soma de todos esses fatores, ditos acima, caracterizam e identificam o Estado de Coisas Inconstitucionais. Diante de tal quadro, verifica-se um problema de natureza estrutural, sendo, portanto, necessário que uma série de medidas sejam efetuadas para reparar os danos ocorridos e prevenir os vindouros. Acontece que, essa técnica pressupõe um ativismo judicial, isso porque, seria a Suprema Corte a decidir as providências a serem tomadas, quando na verdade as questões que originaram o panorama de violações dizem respeito a todos os Poderes, inclusive, o Poder Legislativo e Executivo, que se omitiram na obrigação de cuidar da coisa pública.
Esse amplo leque de poderes que o Judiciário tem, no diagnóstico do Estado de Coisas Inconstitucionais, seria uma situação excepcional, uma vez que a própria desonra generalizada aos direitos fundamentais é por si só (ou deveria ser) uma condição igualmente incomum. Apesar de não haver previsão constitucional e legal do reconhecimento do Estado de Coisas Inconstitucionais e ainda uma maior intervenção da Corte Constitucional nas políticas públicas, essa atribuição atípica é uma solução bem vinda quando estar-se-á frente a um quadro de afronta disseminada aos direitos constitucionais.
Em maio de 2015, o STF recebeu do Partido Socialista e Liberdade (PSOL) uma Arguição de Descumprimento de Preceitos Fundamentais (ADPF) pleiteando que a Corte declarasse a violação dos preceitos fundamentais que o sistema penitenciário brasileiro vive, tal como a adoção de providências por parte dos entes federados no intuito de dirimir a lesão aos direitos dos encarcerados.
No caso em questão a ADPF 347 o STF reconheceu que a situação do sistema penitenciário do Brasil desrespeita variados dispositivos constitucionais, documentos internacionais que tutelam direitos humanos e ainda normas infraconstitucionais. Identificou, também, que as penas cumpridas pelos presos, na infraestrutura que os presídios fornecem, são cruéis e desumanas. Contudo, o STF ainda não julgou definitivamente o mérito, deferindo parcialmente alguns pedidos solicitados na liminar, que concerne na realização das audiências de custódia no prazo máximo de 90 dias e outorgou a liberação do saldo do Fundo Penitenciário Nacional (FUNPEN) para ser empregado no propósito pelo qual foi formado, proibindo contingenciamentos.
Percorrer esse terreno movediço do sistema prisional brasileiro é um grande desafio a ser encarado pelos diversos ramos da ciência, principalmente do Direito, mas ainda assim fundamental ser considerado frente a crescente criminalidade e consequente numerosa população carcerária. Diante do exposto, não obstante o desrespeito aos direitos constitucionais do preso ser um assunto regularmente debatido é de suma importância ser analisado e questionado, até vislumbra-se uma evolução.
Referências
(1) No caso concreto, 45 professores dos Municípios de María La Baja e Zambrano tiveram seus direitos previdenciários cerceados pelas autoridades locais. Na oportunidade, a corte verificou que a desobediência a esses direitos era generalizada, pois alcançava diversos outros professores, além dos que pleitearam a referida ação. Afirmando estar cumprindo um “dever de colaboração” com os outros poderes, a corte entendeu por bem estender os efeitos da decisão para todos os professores, não somente para as partes do processo, declarando o “Estado de Coisas Inconstitucional”. Determinou que os outros Municípios, nos quais os professores se encontrassem na mesma situação a correção dessa inconstitucionalidade em prazo razoável, enviou, também cópias da sentença aos ministros da Educação, da Fazenda, do Crédito Público, ao Diretor do Departamento Nacional de Planejamento, aos governados e Assembleias, bem como, aos prefeitos e aos Conselhos Municipais, com a finalidade de encontrarem soluções práticas e orçamentárias para o problema manifestado.
(2) PEREIRA, Luciano Meneguetti. O Estado de coisas inconstitucional e a violação de direitos humanos no sistema prisional. Revista interdisciplinar de Direitos Humanos. Unesp. Bauru, v. 5, n.1, p. 167-190, jan./jun. 2017, p. 177.
(3) Refere-se à Corte Constitucional Colombiana quando tratou do Estado de Coisas Inconstitucionais. No Brasil, tal corte equivaleria ao Supremo Tribunal Federal, que é o órgão máximo do Poder Judiciário.
(4) CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. O Estado de Coisa Inconstitucional e o litígio estrutural. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2015-set-01/carlos-campos-estado-coisas-inconstitucional-litigio-estrutural Acesso em: 07/04/2018.
(5) Ibidem.
(6) A proteção deficiente ocorre quando o Estado falha no dever de proteger algum dos direitos fundamentais em uma situação específica, seja omitindo-se de agir para promover a tutela de tais direitos, ou ainda o fazendo de maneira ineficaz e inadequada.