O Código Civil (1) vigente desde 2002, cujo projeto data de 1.975, já é considerado ultrapassado em vários aspectos. Afinal, a atividade legislativa é limitada e burocrática, e, em especial quanto à evolução tecnológica, não alcança as rápidas mudanças.
Recentemente, com o grande boom do mercado digital, aqui compreendido pelo aumento de investimentos em moedas digitais, valorização financeira de perfis em redes sociais, monetização de conteúdos dentre outros, surge a necessidade de se regulamentar a herança digital.
Logins, senhas, imagens, vídeos, textos, documentos, áudios, blogs, perfis em redes sociais, e qualquer outro elemento armazenado exclusivamente em nuvem, constituem o acervo digital de uma pessoa. Sua destinação após a morte do titular, é tema cada vez mais discutido.
Acervo digital moral x acervo digital sucessório:
O legado digital do titular possui duas vertentes principais.
Ele pode simplesmente se relacionar aos seus direitos constitucionais e civis de personalidade, sem qualquer valor econômico envolvido. Nestes casos, já é comum o ajuizamento de ações na justiça, que visam em geral, obrigar provedores a excluir perfis e contas do usuário ou apagar seus dados.
No entanto, o acervo digital de determinada pessoa pode também possuir valor econômico, imediatamente aferível ou não. Especialmente neste último caso, é necessário estabelecer os critérios para destinação deste acervo aos herdeiros, após a morte de seus titulares.
É o caso por exemplo, do patrimônio virtual de personalidades como Gugu Liberato (mais de 3 milhões de seguidores, só no Instagram) e Kobe Bryant (mais de 19 milhões de seguidores, só no Instagram) que por óbvio, possuem enorme potencial financeiro e agora são alvo de disputas judiciais.
Para Flávio Tartuce (2), cuja reflexão é sempre muito relevante:
(…) é preciso diferenciar os conteúdos que envolvem a tutela da intimidade e da vida privada da pessoa daqueles que não o fazem para, talvez, criar um caminho possível de atribuição da herança digital aos herdeiros legítimos, naquilo que for possível. Entendo que os dados digitais que dizem respeito à privacidade e à intimidade da pessoa, que parecem ser a regra, devem desaparecer com ela. Dito de outra forma, a herança digital deve morrer com a pessoa.
Não obstante, é certo que por parte dos titulares de patrimônio digital, o anseio que prevalece é por uma disposição legal que os autorize a determinar em vida, que seus perfis continuem sendo administrados e mantenham-se ativos após sua morte, de forma a preservar sua honra, imagem e porque não, sua fama e relevância pública e não menos importante, o lucro.
O panorama legislativo atual:
Legislações especializadas como o Marco Civil da Internet (3), promulgada em 2014 e a nova Lei Geral de Proteção de Dados (4), cuja entrada em vigor se dará em agosto de 2020, embora pudessem, lamentavelmente não preveem qualquer disposição a respeito da destinação do acervo digital de pessoa falecida ou tornada incapaz.
Assim, hoje encontram-se em debate alguns Projetos de Lei para promover alterações no Código Civil de modo a incluir disposições a este respeito.
Ganha destaque o Projeto de Lei nº 5.820/2019 (5), de autoria do deputado Elias Vaz do PSB/GO que prevê, dentre outras disposições o testamento digital. O testamento digital é uma disposição de vontade que pode versar por exemplo sobre o enterro da pessoa, destinação de suas joias e também sua herança digital.
Pode ser um instrumento particular convencional, podendo ser dispensadas as testemunhas em caso de assinatura eletrônica e ainda pode ser gravada em vídeo, observando-se determinados requisitos para sua validade.
As exigências de validade para atos desta natureza são, conforme o atual texto do projeto de lei, bastante razoáveis e incluem clareza e objetividade na declaração, nitidez de imagem e som, declaração de data do ato, vernáculo Português, gravação em formato compatível com os programas de reprodução existentes na data da formalização do ato, contendo a qualificação completa dos envolvidos e das testemunhas que presenciam o ato, se for o caso.
Essas últimas, são dispensáveis em caso de disposição exclusivamente sobre herança digital sem cunho patrimonial.
O PL 5.820/19, atualmente tramita na Câmara dos Deputados e aguarda parecer do relator na Comissão de Constituição e Justiça.
Hoje, as plataformas possuem um regramento próprio para o armazenamento ou exclusão de dados de pessoas falecidas. Normalmente, exigem o envio de documentos que comprovem a morte ou incapacidade do sujeito bem como a comprovação de parentesco daquele que requer a exclusão dos dados. A maioria das plataformas não possui qualquer previsão em relação à autorização de transferência de gerenciamento destes dados a terceiros, mesmo herdeiros.
Assim, na falta de uma declaração formal do titular quanto à destinação do seu acervo digital seu falecimento, as famílias precisam recorrer à justiça, para buscar autorização para o gerenciamento e definição sucessória.
Conclusão
As lacunas da lei hoje em vigor, podem colocar em risco os direitos de privacidade do titular e gerar uma avalanche de processos judiciais envolvendo o legado digital.
A maneira mais segura de se precaver quanto a isso, enquanto a matéria não é regulada por lei, é fazer uma declaração escrita pelos meios convencionais já existentes, deixando claro suas pretensões quanto ao destino dos bens digitais.
A problemática no entanto, parece bem longe de acabar tendo em vista que não se pode perder de vista que o acervo digital, ainda que dotado de conteúdo econômico, é, via de regra, antes de tudo, uma representação de direitos de imagem e privacidade, que no âmbito personalíssimo do titular, não podem simplesmente ser objeto de sucessão.!
Referências
(1) Brasil. Código civil. Promulgado em 10 de janeiro de 2002. Brasília. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm>. Acesso em: 16 jan. 2020.
(2) Herança digital e sucessão legítima: primeiras reflexões. Coluna do Migalhas do mês de setembro de 2018. Disponível em:
<https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/630721643/heranca-digital-e-sucessao-legitima-primeiras-reflexoes>. Acesso em 12/02/2019.
(3) BRASIL. Lei Federal nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em: 11 fev. 2020.
(4) BRASIL. Lei Federal nº 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm>. Acesso em: 11 fev. 2020.
(5) BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei Ordinária nº 5.820/2019. Dá nova redação ao art. 1.881 da Lei nº 10.406, de 2002, que institui o Código Civil. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2228037>. Acesso em: 11 fev. 2020.